20 apontamentos para a leitura de um livro e de uma prática
Francisco Ascensão, 2024

Nas primeiras páginas do livro, lança-se o mote para a reflexão. fala-se acerca da incapacidade que o convite e a publicação de uma primeira monografia representaram na vontade de fixar um discurso que possa registar convicções e expectativas. Concebido como um livro de bolso, é um livro pronto a ser utilizado. com linhas bem afastadas, e um lápis para riscar e apontar. Miguel Esteves Cardoso diz, no seu último livro, qualquer coisa como: é uma falta de respeito (para os autores) que não se risquem e anotem os seus os livros. Foi precisamente o que fiz para preparar esta intervenção.
O livro retrata muito bem aquilo que, a meu ver, distingue o atelier local de outros ateliers: uma grande coerência e continuidade entre aquilo que é viver, trabalhar, e a relação destas duas coisas com claras e fortes convicções políticas. A dupla porta vermelha de entrada, na rua sousa paupério, em valongo, tem as letras gravadas em baixo relevo “atelier local”. O atelier local é a casa ou é o escritório? é ambos e nenhum. ou antes, são ambos a mesma coisa e coisa única. Não num sentido obsessivo pelo trabalho, que de forma alguma existe, já que o joão e a maria fazem questão de não desistir ou menorizar nenhum destes dois mundos, que valorizamde forma idêntica, ou antes, que não distinguem (o trabalhar ou o viver), mas sim pela verdadeira implementação (não planeada, absolutamente natural) do possível cliché, utilizado por vezes de forma gratuita, de que a arquitectura é uma forma de vida.
No texto de abertura, os autores ambicionam que o livro possa servir, pelo menos, para iluminar as afinidades éticas e estéticas entre uma fachada rosa suave e um interior inacabado, construído com blocos de betão feios e vulgares. O atelier local é exactamente isto. É uma formulação teórica suficientemente flexível para que a coerência do seu trabalho não dependa de uma linguagem formal, mas antes de uma forma de pensar nas coisas, livre de preconceitos, mas cheia de convicções. O resultado é tanto coerente como diverso.
Este livro é, em primeiro lugar, um gesto de generosidade. É a partilha de uma forma de olhar. É o resultado da assimilação de anos de estudo - e de bom estudo - e é (acredito) um contributo precioso para a história dos livros de arquitectura. há poucas práticas que conseguem fazer isto: fixar uma formulação teórica que é o resultado directo da consolidação das ideias que alimentam o quotidiano da prática de projecto.
Nesse sentido, este é um livro que resulta de um posicionamento periférico (ou à margem), no sentido em que é um livro que resulta de um exercício de afastamento suficientemente grande ao estirador, na medida certa para que a arquitectura não se resuma a um exercício virtuoso de alinhamentos e proporções. Mas também porque o atelier local se instalou na periferia, e opera fundamentalmente na periferia, e resulta da valorização da periferia enquanto tecido com uma história à espera de ser contada ou interpretada.
O João e a Maria brincam muitas vezes, ironicamente, com a ideia de que o projecto está no lugar. Pode é não ser o mesmo lugar onde se está a projectar. Será, frequentemente, um outro lugar, algures, ou nenhures, um lugar que terão visitado ou estudado, ou algum lugar alojado numa memória lúcida ou difusa. É esse o lugar dos projectos do atelier local, algures.
Um dos pilares estruturantes do pensamento do atelier local é a percepção da importância da formulação de uma hipótese de entendimento do mundo. Só a partir do reconhecimento da importância desse exercício se pode ambicionar transformá-lo, mesmo que apenas através de pequenos gestos, confinados pelos limites da arquitectura enquanto instrumento social numa sociedade neoliberal.
Esse exercício de reconhecimento do mundo que nos rodeia alimenta a definição de uma linguagem arquitectónica, ou antes, de um modo de fazer arquitectura que aceita e celebra elementos desenhados ou determinados por outros, incorporando-os, atribuindo-lhes novos significados. Um artista é alguém que soube olhar para uma coisa que os outros não valorizaram.
Outra brincadeira (séria) frequente, entre amigos, é a afirmação, uma vez mais ironizada, da importância do desenho enquanto ferramenta para pensar o projecto. No atelier local, frequentemente, o desenho só se inicia após se ter consolidado uma ideia suficientemente robusta para se aguentar por si só. não significa, por isso, que não exista um grande apreço pelo desenho, exercício inevitavelmente prazeroso. Nas deslocações de ida e volta a uma obra que estamos a fazer em conjunto, a 1h30 de distância do porto, resolvem-se quasesempre as pontas soltas do projecto em conversas extremamente estimulantes, sem um único esquisso, consolidando estratégias de abordagem apenas com palavras, com uma definição tal que a sua tradução num desenho se torna absolutamente previsível, mas não por isso menos apetecível.
O atelier local opera com uma caixa de ferramentas bastante vasta. contém chaves para muitos tipos de parafusos, e alicates para as mais diversas situações. É o estudo — da arquitectura e de muitos outros temas — que vai completando a caixa com as ferramentas que possam faltar, mas cuja ausência não se antecipava.
A certa altura dizem, no livro: a teoria precede o improviso, que será o mesmo que dizer que o estudo precede a intuição.
Em muitas conversas com o atelier local, surgia a frase “a arquitectura serve para lixar (aqui, imagine-se a palavra iniciada com F) a vida às pessoas”, frase que agora, com a leitura do livro, vim a perceber que é parcialmente emprestada pelo Lawrence Weiner. Os projectos do atelier local procuram fazer exactamente isso, encontrar um sentido provocatório que leve os seus utilizadores a alargarem as suas questões e expandirem as suas aspirações. Talvez seja uma das poucas formas que nos resta de transformação do mundo através da arquitectura.
Os projectos do atelier local têm a dose de sal q.b.. tudo está na dose certa, numa procura constante por uma economia de meios material, mas principalmente, conceptual. Com muita inteligência, transforma-se a preguiça inerente à condição humana em ferramenta conceptual capaz de produzir uma arquitectura que faz frente aos desafios e limitações constantes da construção em portugal, com as dificuldades que todos conhecemos.
Nessa procura de uma economia de meios, reside um sentido de colectividade, onde os artesãos participam, frequentemente, de forma activa no refinamento de soluções. Dizem, no livro: “aquilo que poderá parecer um detalhe refinado é frequentemente apenas uma resposta do artesão às nossas próprias falhas conceptuais ou imprecisões.”
Ideia essencial para que os dois pontos anteriores funcionem devidamente, é ter elasticidade suficiente para saber encontrar no acaso oportunidades para a criação de novos significados, para encontrar beleza no inesperado.
Ideia ainda mais importante para que os três pontos anteriores funcionem é fazer exactamente o mesmo com o engano.
O atelier local procura, frequentemente, ou antes, utiliza com muita frequência os ready-mades (talvez seja uma das ferramentas mais utilizadas daquela caixa de que falava há pouco). Em oposição a um desenho obsessivo de detalhes complicados, utiliza-se a assemblagem (por vezes subvertida) de elementos que já existem, e que servirão mais propósitos do que aqueles para os quais foram concebidos, havendo abertura mental para essa descoberta.
Em conversa com os clientes, há que encontrar as brechas que permitam ampliar a discussão do programa e do projecto para algo mais significativo do que metros quadrados ou gostos pessoais.
Ultrapassada a tal discussão de metros quadrados, pode então ambicionar-se uma arquitectura que ultrapassa a cubicagem disponível. Uma arquitectura infinita.
Para fazer essa arquitectura infinita, o atelier local faz apenas o suficiente. Porque o acessório impede que se veja esse horizonte sem fim. Mas esta apresentação será insuficiente. O importante é comprarem o livro, e utilizarem o lápis, não para desenhar, mas para apontar possibilidades para uma arquitectura para os nossos dias.